sábado, 31 de maio de 2008

A insustentável sustentabilidade brasileira



Para o pessoal da cidade grande, que costuma ouvir falar em Amazônia sustentável e manejo florestal, eis uma pequena amostra das condições de trabalho em áreas de floresta relativamente preservadas e isoladas como são as terras indígenas.

O custo operacional é impraticável por uma série de razões, de várias ordens, que vão desde a dificuldade de implantar infra-estrutura até a burocracia e ineficiência governamental, passando pelas características climáticas, pelo regime de chuvas, pela cultura local de trabalho informal, pela falta de pessoal qualificado. Sem falar nos custos da certificação.

Não sei se a coisa mudou, mas até bem pouco tempo, tudo conspirava contra aqueles que desejavam realizar atividade econômica lucrativa na floresta, pautando-se pelos critérios da responsabilidade socioambiental e desenvolvimento sustentável.



As imagens abaixo foram tiradas durante uma "safra" de madeira manejada na área Xikrin do Cateté. Elas representam só uma parte do trabalho: recuperar estrada, abrir ramais de acesso e arraste, e fazer o corte. Antes era preciso fazer o zoneamento, censo florestal, inventário diagnóstico, passar pela fiscalização do Ibama, esperar pela emissão das autorizações (ATPFs). E depois ainda faltava o transporte, o beneficiamento na serraria e a comercialização.

Talvez fosse mais fácil levar o Caruso para cantar ópera na floresta.
Chamem o Fitzcarraldo.

(E não custa lembrar das palavras do Herzog, postadas aqui mesmo no blog).





















As fotografias são de autoria da equipe do Instituto Socioambiental que trabalhava no projeto, prestando assessoria aos Xikrin.
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Fotos históricas dos Xikrin





Aldeia Xikrin do Cateté, 2000 (Cesar Gordon)

No dia 25 de outubro de 2000, às 6h20 da manhã, eu pulei da rede ainda zonzo de sono, ao escutar o ruído distante de um motor de avião se aproximando da aldeia. Seria a primeira de uma série interminável de aeronaves que pousariam na pista da aldeia Cateté naquele dia.

Tratava-se da comitiva dos ministros da Justiça e do Meio-ambiente que faziam uma visita aos Xikrin para comemorar a primeira exploração legal e sustentável de madeira certificada realizada por uma comunidade indígena no Brasil.

Os Xikrin fizeram uma recepção magnífica, de sorte que os ministros sentiram-se muito bem e à vontade nas poucas horas em que estiveram na aldeia. Os índios demonstraram satisfação com a visita das autoridades, mas não deixaram de cobrar um apoio mais efetivo para que o projeto de manejo, pioneiro no país, tivesse continuidade, e para que outros povos indígenas que enfrentavam o problema da extração ilegal de madeira em suas terras pudessem um dia celebrar também uma “festa da madeira”.

Foi um exemplo de civilidade. Mas o apoio institucional do governo não veio.

Para saber o que foi o projeto de manejo florestal xikrin, leia aqui.


O então ministro Zequinha Sarney é recpecionado pelo cacique Karangre (Foto CG)


Índias Xikrin cumprimentaram ministros e autoridades (Foto CG)


Cacique Karangre discursa sob olhar atento das jornalistas (Foto CG)


O então ministro José Gregori comemora com os caciques Karangré e Bepkaroti (Foto CG)
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sexta-feira, 30 de maio de 2008

Um olhar antropológico sobre o caso Kayapó

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Imagem: Sergio Macedo, Xingu!, 2007


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A propósito dos últimos acontecimentos envolvendo os índios Kayapó em Altamira e bastante noticiados pela imprensa (ver abaixo), lembrei que no capítulo 6 do meu livro (Economia Selvagem: ritual e mercadoria entre os índios Xikrin Mebêngôkre), eu havia tratado da questão da violência e da agressividade dos Xikrin, especialmente no contexto das reuniões políticas com os brancos (Funai e principalmente Vale do Rio Doce). Os Xikrin são um dos subgrupos Kayapó (ou Mebêngôkre), habitando a região do sudeste do Pará desde meados do século XIX.

O texto abaixo é uma versão ligeiramente adpatada do livro, na qual eu articulo a questão da agressividade com algumas categorias e idéias fundamentais no pensamento Xikrin e Kayapó.

Ele vai dividido em três partes para facilitar a leitura no blog.


Domesticados e Selvagens (parte I)

Os brancos no centro da roda

Reuniões com os representantes da Companhia Vale do Rio Doce, funcionários da FUNAI, políticos ou procuradores públicos são momentos de grande efervescência política para os Xikrin, grupo Mebêngokre (Kayapó) do Sul do Pará, falante de uma língua jê setentrional. Reuniões são eventos nos quais os Xikrin, em bloco, procuram afirmar-se politicamente e fazer valer suas demandas diante da sociedade brasileira.

O texto que se segue baseia-se primordialmente em observações feitas durante reuniões dos índios Xikrin com funcionários da Companhia Vale do Rio Doce, empresa que capitaneia a exploração mineraria na região de Carajás e que mantém um convênio de assistência aos índios, a titulo de compensação pelos impactos ambientais em uma zona de floresta vizinha à Terra Indígena Xikrin.

Atualmente, a Vale do Rio Doce é a principal fonte de recursos dos Xikrin, movimentando vultosos gastos anuais para cumprir o Convênio 453 de 1989, e contratos subseqüentes com os Xikrin. Os recursos são gerenciados por associações sem fins lucrativos dirigidas pelos Xikrin, e alocados a diversos programas de assistência – saúde, educação, infra-estrutura, vigilância do território, atividades produtivas, transporte, abrangendo ainda boa parte do pessoal envolvido nessas atividades – e incluem uma verba fixa, paga mensalmente, destinada ao consumo de bens não-duráveis. O Convênio garante aos Xikrin um bom padrão de assistência, provavelmente bem melhor do que o da grande maioria das populações indígenas no Brasil, ainda que a Vale do Rio Doce não venha sendo capaz de gerenciar de maneira adequada e inteligente sua relação com os índios.

Os gastos anuais destinados aos Xikrin costumavam ser orçados normalmente a cada final de ano, ou início do ano-base, em reunião dos índios com representantes da Vale do Rio Doce e da Funai, na “casa dos homens” no centro da aldeia, ou no núcleo de Carajás, sede da companhia, ou ainda em Marabá. Nessas ocasiões, os índios estabelecem e apresentam aos encarregados da Vale as suas prioridades de desembolso: construção de casas, aquisição de barcos e motores, aquisição de caminhões para transportá-los às cidades vizinhas, aumento do valor da verba destinada ao consumo mensal, etc.

A reunião de planejamento é antecedida, durante alguns meses, de uma intensa, difusa e complexa mobilização da comunidade indígena. Tal mobilização sofre, evidentemente, interferências múltiplas e heterogêneas de uma série de pessoas envolvidas com os Xikrin – representantes da própria Vale do Rio Doce; assessores do Convênio e técnicos; funcionários do Posto Indígena, incluindo os chefes da Funai, pessoal de saúde e educação; funcionários das associações; terceiros diversos (empreiteiros, por exemplo); cada qual com suas motivações específicas, algumas mal-disfarçadamente direcionadas muito mais aos próprios interesses do que em prol dos índios. Mas é claro que, mesmo as sugestões bem-intencionadas de alguns dos atores não vão sempre ao encontro do que desejam os próprios índios.

No que concerne exclusivamente a eles, as demandas têm, geralmente, sua origem no interior das unidades domésticas, as casas. Alguém precisa de uma moradia nova ou de uma reforma no telhado. Um outro deseja um motor de popa para seu barco. Uma mulher reclama da falta de uma máquina de costura. Outra diz que é preciso equipar sua cozinha com um fogão, pois mal é possível preparar a comida para as pessoas de sua casa sem tal utensílio. Outra, ainda, lembra que seu filho tirou carteira de motorista, e que seria importante que ele começasse a treinar no caminhão da comunidade, ou em uma viatura nova, substituindo o motorista não-indígena. Surgem também assuntos gerais, como aumento da verba mensal, construção e melhoria de estradas dentro da área, aumento de recursos para saúde, etc.

De rumores domésticos, as demandas individuais e coletivas vão lentamente ganhando momento e materialidade, até serem finalmente expressas de modo público na “casa dos homens”. Mas, antes disso, muita conversa já terá acontecido na casa dos chefes, que serão porta-vozes de um conjunto de reivindicações. Finalmente, nos dias que precedem a grande reunião, todos os homens conversam muito na casa do centro da aldeia. Então, depois de tanto escutar, o chefe da aldeia prepara uma lista de solicitações, que será entregue aos representantes da Vale do Rio Doce na hora da reunião.

O ponto alto de todo esse processo é a grande reunião de planejamento, envolta em impressionante mise-en-scène por parte dos Xikrin. As aldeias mobilizam-se e a maior parte dos homens adultos se faz presente, junto com os chefes e lideranças, formando um grupo de algumas dezenas de homens, que se referem a si mesmos em português como “guerreiros”. As mulheres, normalmente, não participam das reuniões, sobretudo quando não ocorrem na aldeia. Mas, eventualmente, podem acercar-se da casa no centro da aldeia, com as crianças, para observar o que se passa. Os homens apresentam-se pintados e paramentados, com adornos plumários, braceletes, quase sempre portando as antigas armas de guerra: bordunas, arcos e flechas. Reúnem-se na “casa dos homens” à espera dos brancos, em meio à exortações proferidas ora pelos chefes, ora por homens mais velhos.


Foto Cesar Gordon

Quando chegam à aldeia os representantes da Vale do Rio Doce, os servidores da Funai ou os funcionários brancos das associações, todos os homens xikrin já se encontram na casa de reuniões. Em pouco tempo, os funcionários brancos vêem-se cercados por uma massa de índios pintados e ornamentados. A sensação de desconforto para alguns brancos é nítida. Há uma seqüência de cumprimentos, que os índios fazem questão de realizar. Depois um dos líderes inicia a reunião, conclamando os representantes da Vale do Rio Doce a colocarem se no centro da “casa dos homens” para prestar os informes necessários quando for sua vez de falar. Mas antes falam os índios. Alguns em tom moderado, outros em duros discursos contra a companhia, responsabilizada pelas carências da aldeia.


Foto Cesar Gordon

As reuniões obedecem a um ritmo ou a um roteiro razoavelmente fixo, ditado pelos Xikrin. Eles iniciam falando, a começar pelos chefes, que se pronunciam em português, mas com trechos em mebêngôkre dirigidos à audiência indígena, entre os quais se destacam várias expressões de incentivo, com função fática (djãm tãm? ≈ ‘não é isso?’; djãm kôt? ≈ ‘está certo?’), respondidas em uníssono pelos homens: Tãm! (‘isso mesmo!’), Nà! (‘sim’). Os chefes são seguidos por outros “guerreiros”, cujos discursos apresentam enorme homogeneidade, por vezes tratando-se de repetições e reiterações de trechos já ditos pelos que falaram anteriormente.

Algumas vezes, os Xikrin fazem coincidir essas reuniões de política externa com o período cerimonial. Realizados também, quase sempre, no centro da aldeia, os rituais xikrin têm, caracteristicamente, a capacidade de criar, por uma série de procedimentos, um estado emocional e afetivo partilhado por todos os co-residentes aldeãos. Esses procedimentos são de diversas ordens, mas têm como motivo uma espécie de “focalização” perceptiva, sensorial e performativa que produz uma aproximação ou identidade corporal e psíquica das pessoas: dança-se junto (em fila, de mãos dadas, ou abraçados, com os corpos juntos), canta-se em uníssono (ainda que em vários momentos haja separação entre vozes masculinas e femininas), come-se junto, relembram-se parentes mortos e histórias de antepassados comuns.

Nos períodos rituais, determinados sentimentos e afetos que são cotidianamente partilhados apenas pelo círculo mais restrito de parentes podem ser reconhecidos mais amplamente em todos os co-residentes (e eventualmente em gente de outras aldeias, já que os rituais podem congregá-las). Tais sentimentos, no contexto doméstico, constituem-se pelo processo de “fabricação corporal”, isto é, pela fabricação dos corpos (afetos e sentimentos) dos parentes como se fossem um mesmo corpo ou um corpo assemelhado pela partilha de substâncias – esse “nhi pydji” : ‘corpo único’, ‘carne única’, como dizem os Xikrin, que é característico dos parentes próximos e que já foi definido na literatura sobre os Jê do Norte como o “grupo de substância” (ver Roberto da Matta, por exemplo, O mundo dividido, 1976, p.244).
Nos períodos rituais, os corpos, afetos e sentimentos partilhados e assemelhados do ambiente familiar e doméstico parecem poder ser partilhados pela aldeia inteira. E são reconhecidos como os mesmos sentimentos e afetos corporais inerentes à esfera doméstica, constituindo, assim, a idéia de um único corpo físico e social, uma comunidade, enfim. Pode-se dizer, portanto, que os procedimentos rituais estão na base da constituição da própria comunidade em seu sentido pleno. Nesse sentido, o ritual apareceria como o ponto mais alto do processo de fabricação do parentesco e de constituição dos grupos locais xikrin e kayapó, pensados como grupos de parentes.


Foto Cesar Gordon

Portanto, não é casual que os Xikrin definam o momento da reunião com os brancos no centro da aldeia com a expressão aben pydji (‘tornar-se um’). É como se, tal como os rituais tradicionais, as reuniões políticas pudessem também criar um estado afetivo comum, um corpo comum, que se contrapõe, então, nesse momento, aos brancos ou kuben (termo da língua mebêngôkre utilizado para se referir aos brancos ou não indígenas de maneira geral). Podemos supor também que o estado de “comunidade” constituído pelo ritual facilite o entendimento e o consenso interno num momento em que é preciso atuar homogeneamente e em bloco para obter melhores resultados diante de um estrangeiro poderoso.

Quando a reunião ocorre fora da aldeia, os Xikrin preparam-se para ir à cidade de um modo totalmente diferente de quando para lá vão no dia-a-dia. Em circunstâncias corriqueiras, eles visitam a cidade vestidos com roupas de branco e gostam de se apresentar “bem-arrumados”, “civilizados”, “igual ao kuben”. Isto é, procuram apresentar a face domesticada ou pacífica (tradução do termo uabô) de sua relação com os estrangeiros. Para os importantes eventos políticos, ao contrário, os Xikrin acorrem à cidade como se estivessem partindo para uma expedição de caça ou de guerra. Assumem uma aparência àkrê, isto é, ‘bravia’, ‘feroz’, ‘selvagem’ – e apresentam-se como se fossem supostamente atacar um inimigo. O antropólogo norte-americano Tercence Turner, talvez o maior conhecedor da cultura meêngôkre kayapó, já havia chamado a atenção para o modo como os Kayapó utilizam conscientemente a imagem que deles fazem os brasileiros, e se valem dos signos de sua reputação de guerreiros ferozes para obter dividendos políticos. Turner descreveu a expedição dos Kayapó para o célebre “encontro de Altamira”, em 1989, como sendo equivalente a uma “caçada coletiva” (“Baridjumoko em Altamira”, Povos Indígenas do Brasil 1987 1990, CEDI, 1991, p.337).

A questão é interessante. Nos dias de hoje os Xikrin (e outros Kayapó) não mais se consideram eminentemente àkrê (brabos, selvagens), nem se reconhecem efetivamente como guerreiro – no sentido estrito de não fazerem mais guerras reais, já que, por outro lado, os homens continuam adesignando-se a si mesmos, simbolicamente pela palavra “guerreiros”. De qualquer modo, na performance das reuniões, é como se os Xikrin reativassem um estado belicoso, fazendo da sua própria braveza, ou dos símbolos de sua braveza, um código e uma pragmática. Digo isso porque quando perguntados sobre sua atuação agressiva nas reuniões, os índios foram explícitos em afirmar que se trata de uma estratégia de negociação, para que os brancos fiquem acuados (kam uma kadjy – ‘para que tenham medo’), e não de uma ameaça concreta de violência. Assim, paralelamente à aparência bravia, destacam a relevância de saber “falar duro” (kaben töjx, kaben katàt) com os brancos para que suas reivindicações sejam atendidas. De fato, as reuniões são eventos em que a oratória xikrin é extremamente ressaltada. Por isso é importante atualmente dominar bem o português, para que se possa impressionar os brancos com as palavras certas, direitas (kaben katàt).

Muitas vezes, porém, as negociações tornam-se tensas, os Xikrin voltam a falar, endurecendo a conversa, eventualmente ‘ameaçando’ tomar atitudes mais extremas. Fechar as estradas de acesso à Serra de Carajás, paralisando algumas das operações da Vale do Rio Doce, é uma das ameaças constantes dos Xikrin, caso a empresa descumpra os acordos previamente estabelecidos. E os Xikrin podem, de fato, invadir a Serra de Carajás e fechar a estrada ou a ferrovia, como já ocorreu, recentemente, em algumas ocasiões, com a nítida disposição de obter, por pressão, o que fora acertado e, do seu ponto de vista, descumprido. Esses momentos podem desdobrar se em eventos bastante tensos e problemáticos, nos quais os Xikrin podem tornar-se, suponho, verdadeiramente àkrê. A questão é delicada. Aliás, esse é um ponto em que os índios insistem enfaticamente, dizendo que só tomam medidas mais enérgicas quando percebem que estão sendo enganados ou “enrolados”, conforme dizem, até o limite do tolerável pelos brancos.

Domesticados e Selvagens (parte II)

Àkti: o espírito da predação

Neste ponto vale aprofundar a questão da performance ou do estado àkrê (bravo), pois tudo isso é mais complexo do que parece à primeira vista. De saída, é preciso dizer que essa atitude não diz respeito apenas a um estado afetivo. Ela está no cerne mesmo da relação dos Xikrin com os brancos e com os estrangeiros em geral. Mais do que isso, a questão possui conexões profundas com a própria idéia de agência e de sujeito na cosmologia mebêngôkre.

Os termos àkrê e uabô podem ser glosados como se segue: àkrê (variante djàkrê) ≈ bravo, valente, furioso, selvagem, feroz, perigoso, corajoso, irado, irritadiço; uabô (variante djuabô) ≈ manso, covarde, pacífico, dócil, domesticado, subjugado, suave, brando, gentil, humilde. Existe no corpus narrativo mebêngôkre um mito já bastante conhecido que poderíamos considerar como sendo o mito da origem da bravura e ao mesmo tempo da origem dos pássaros e dos adornos plumários. Ele faz parte da saga dos irmãos heróis e narra um episódio em que eles matam a Grande Ave Predadora Àkti, um animal sobrenatural mitológico que encarnava a máxima potência predatória, hoje atenuada nas grandes aves falconiformes (o nome desta Ave mítica designa também o gavião-real, Harpia harpyja).


Foto: acervo público via Google©
A palavra mebêngôkre àk é um termo classificatório geral para ‘ave’; mais especificamente designa também a família dos falconiformes . Àkti pode ser glosado como ‘Grande Ave’ (onde ti ≈ aumentativo, ‘grande’, ‘enorme’), epítome de todas as aves.

Antigamente os índios eram mansos, fracos e não tinham armas. Eles vivam à mercê de Àkti, o gavião gigante, que os caçava, carregava-os pelo céu até seu ninho e os devorava. Um dia uma mulher velha foi ao mato com seus dois sobrinhos pequenos para tirar palmito. Ali ela foi atacada por Àkti diante dos meninos, que fugiram aterrorizados para a aldeia. O tio dos meninos (irmão da mulher devorada pelo grande gavião), movido pelo sentimento de vingança, descobre um meio de liquidar o monstro, transformando seus sobrinhos em super-homens. Ele coloca os meninos dentro de um grotão, alimentando-os com beiju, banana e tubérculos para que cresçam bastante e fiquem fortes. Passam-se os dias e é como se os meninos fermentassem dentro d’água. Depois de um tempo, eles haviam crescido e tornado-se enormes, mais fortes e capazes que qualquer índio. Caçavam antas e outras caças grandes como se elas fossem pequenos roedores. Um dia, então, Kukry-uire e Kukry-kakô saem para caçar o Àkti, munidos de borduna, lança e um apito de taquara, armas feitas pelo tio. Ergueram um abrigo de palha no chão, de onde se via o ninho do gavião. Ao pé da árvore, havia uma pilha de restos humanos, como ossos e cabelos. Os irmãos atraíram Àkti, soprando o apito. A imensa ave descia pronta para o ataque, mas eles escondiam-se no abrigo, deixando-a desnorteada. Fizeram assim muitas vezes, deixando o pássaro cada vez mais furioso e desorientado, até que mostrou sinais de cansaço. Os irmãos, então, mataram-no com lança e borduna. Como troféu, tiraram penas de Àkti e puseram na cabeça. Cantaram. Celebraram. Depois depenaram a ave e retalharam-na em pedaços pequenos. Sopraram as penas e elas foram transformando-se em pássaro. As penas maiores deram origem as aves maiores (gavião, urubu, arara), as plumas menores deram origem aos pequenos pássaros como o beija-flor.


Esse belo mito parece me exprimir uma passagem lógica fundamental no pensamento mebêngôkre. O mito parece elaborar a idéia de que os Mebêngôkre podem deixar de estar no mundo na condição de presa (uabô), isto é, de objeto da ação de outrem (Àkti), tornando-se eles mesmos predadores (àkrê) e sujeitos da ação, isto é, agentes. No mito, os índios o fazem apropriando-se dos instrumentos da ação predatória – o próprio estado àkrê (até então exclusivo de Àkti – Ave Sobrenatural) e outras armas criadas pelo tio dos heróis. E simultaneamente criam as aves naturais (àk) dos pedaços da Grande Ave morta, fazendo-as objeto de sua própria ação,. Todavia, as plumas tomadas a Àkti e, doravante, às aves em geral, permanecerão como signo ou índice da incorporação da potência agentiva da Ave-Predadora; signo da mudança do sentido da relação agente-paciente (ou sujeito-objeto), que será revivificada no ritual. Não é à toa que todos os cocares de pena são genericamente designados pela palavra meàkà, quer dizer ‘roupa de ave’ (onde me ≈ plural; àk ≈ ave, pássaro; ≈ pele, couro, invólucro, roupa).

São bem conhecidos a importância da emplumação ritual e o simbolismo cerimonial da transformação em ave no universo mebêngôkre. Basta lembrar que o foco do adornamento ritual é a plumária, particularmente rica e elaborada entre os mebêngôkre (além de utilização de penugem cobrindo o corpo, casca de ovos de aves, etc). O próprio sentido das cerimônias está contido na palavra para ‘festa’ e ‘dança’ – metoro – que significa também ‘vôo’ (toro ≈ voar). Os rituais mebêngôkre, portanto, são o momento de recriação dessa passagem mítica, por meio da transformação em ave.

A ave mítica Àkti, assim como o jaguar (este outro grande predador amazônico), é a expressao lógica, a fonte cósmica originária da àkrê-ez, isto é, da capacidade de predar ao invés de ser a presa, da capacidade de assumir a posição de sujeito ao invés de objeto da ação de outrem. O mito revela como os Mebêngôkre concebem todas aves existentes na natureza enquanto partes corporificadas, vestígios, de uma grande ave potência. Àkti é o epítome do próprio espírito da predação (ou a predação em espírito).


Foto: acervo público via Google©
Numa etimologia especulativa, talvez se pudesse aventar alguma derivação entre as palavras àk (‘ave’) e àkrê (‘bravo’). Na língua mebêngôkre xiste um verbo ou rêrê, significando ‘tirar’, ‘arrancar’, por exemplo: no’ô rê ≈ ‘arrancar pestana (no ≈ olho, ’ô ≈ pêlo). Mas o verbo (ou outro, homônimo) também pode ter o significado de ‘irritar-se, discutir, brigar’, donde, provavelmente, kurê ≈ ‘odiar, detestar’, kurê djwöj ≈ ‘inimigo’, ‘aquele que é odiado/odeia’. Daí, quem sabe àkrê tenha tido o sentido de ‘brigar com ave, odiar ave, ter ave por inimigo’, ou mesmo ‘extrair ave’, imbuir-se de um certo ‘estado-ave’.


O mito estaria, assim, estabelecendo algumas condições sob as quais a ação humana (dos Mebêngôkre) pode operar. Adquirida a capacidade de assumir o ponto de vista do sujeito por meio da ação predatória sobre um outro, bem como das qualidades e instrumentos desta ação (o estado àkrê), os Mebêngôkre podem então continuar, por meio de novas ações, seu processo de aquisição de outras capacidades diferenciais, oriundas de outros seres, objetivadas em outros signos – capacidades que serão parte também do seu processo de constituição enquanto um tipo de gente específico, capaz de se reproduzir e seguir vivendo.

Outros mitos tratam do estabelecimento de outras condições não menos fundamentais de existência. Por exemplo, a narrativa da obtenção do fogo, roubado à Onça mitológica e, conseqüentemente, da origem cozinha (ver Lévi-Strauss, O cru e o cozido, 1971) fala de outro pré-requisito de distinção entre humanos e animais: doravante, parece propor o mito, após a aquisição da capacidade de cozer a carne, eliminando (ou secando) o sangue, que é o veículo da alma (karon) dos seres vivos, torna-se possível aos índios comer os animais, sem que isso implique na absorção da potência subjetiva desses últimos. Consumir o sangue ou a carne crua significa consumir a alma, ou a parte ativa do ser, sua subjetividade. Isto resultaria em uma metamorfose mortífera de quem come. O cozimento é o que permite ingerir a carne da caça sem incorporar seu espírito vital, o karon. O que equivale a dizer que o cozimento permite a dessubjetivação do animal caçado. Deixar-se penetrar pelo karon do outro resultaria numa luta, no interior do corpo, pelo ponto de vista do sujeito: um único corpo passa a ser suporte para mais de um ponto de vista. Para o consumidor de sangue ou carne crua, há o enorme risco de ser tomado pela subjetividade da presa e, conseqüentemente, de tornar-se objeto daquele ponto de vista: condenado subitamente a transformar-se de predador em presa e morrer. Esta mesma condição de presa que se expressa na condição dos Mebêngôkre subjugados pela Ave Predadora Àkti, no outro mito .

Há, por conseguinte, uma estreita correlação entre o mito de origem do fogo (que fala do roubo de uma capacidade antes restrita ao Jaguar miotlógico), e a história de Àkti: ambos tematizam idéias mebêngôkre sobre a importância de predar e não ser predado – ser o predador, e não a presa –, estabelecendo determinadas condições para viabilizar a existência; condições que são, também, técnicas e modos de operar sobre o mundo.


Foto: acervo público via Google©

O estado de pura mansidão (uabô puro), por assim dizer, é o estado potencial da presa. Implica ausência total de capacidade de predação e, em última instância, de agência ou subjetividade. Se hipoteticamente atingido, tal estado é absolutamente insustentável, significando nem mais nem menos que a morte, como o mito de Àkti descreve. Para viver, é preciso ser capaz de se tornar predador e, portanto, de se tornar bravo (àkrê). Entretanto, como outros episódios da saga dos irmãos heróis parece explicitar (ver paticularmente Lux Vidal, Morte e vida de uma sociedade indígena brasileira, 1977, p.229), é preciso impor limites à qualidade àkrê e à ferocidade, pois, se descontroladas ou incontidas, também conduzem à morte, na medida em que não permitem constituir o parentesco, promovendo a destruição por autopredação generalizada.

Não ser capaz de dosar a força àkrê tem como efeito a predação constante sobre o outro e a impossibilidade de reconhecer nele um corpo comum, uma identidade, uma comunidade. Ser bravo é não ouvir (kuma ≈ ouvir, atender, entender) os parentes. Por isso, os Xikrin costumam dizer que uma pessoa muito feroz, um guerreiro tomado de fúria, por exemplo, “não escuta, é surdo” (amakre kêt ≈ literalmente ‘sem ouvido’). É como se seu corpo fosse um corpo de fera, de onça, ou como se ela já estivesse quase saindo do seu estado corpóreo: não sente dor, não sente fome, não sente medo, não desvia dos obstáculos na mata, anda sempre em frente, em linha reta, atravessando cipoal, galhos, tudo. Puro espírito da predação. Não é por outro motivo, também, que os animais-símbolo da qualidade àkrê sejam animais solitários como o gavião-real e o jaguar.



Em resumo, ambos estados, àkrê e uabô, possuem dois aspectos ou potencialidades: um positivo, produtivo e criativo; outro negativo e destrutivo. A primeira permite a posição de sujeito, de predador (e não de presa). É uma qualidade adequada para o relacionamento com a alteridade, com forças cósmicas e naturais. É a qualidade da ‘alter-objetificação’ e da ‘auto-subjetificação’. No limite, ela impede a auto-objetificação, necessária para a constituição de parentes, de corpos mutuamente reconhecíveis e identificáveis como o mesmo. Eis, portanto, a necessidade de uma força em sentido inverso, a qualidade uabô que, no limite, impede a auto-subjetificação. Esta capacidade de ser manso é adequada à criação de relações de identidade e de comunidade. É, ao contrario da primeira, a qualidade da ‘auto objetificação’ e da alter subjetificação’.


Imagem: Sergio Macedo, Xingu!, 2007

A vida mebêngôkre, portanto, depende de um equilíbrio entre esses dois estados ou qualidades. Por isso mesmo, eles não podem ser igualmente distribuídos entre as pessoas. Mulheres, no geral, devem ser mais uabô; homens, mais àkrê; chefes precisam ser àkrê, mas devem, ao mesmo tempo, exercer a generosidade, aprendendo a ouvir e ponderar; feiticeiros e xamãs também são àkrê e assim por diante. E essas características são efetivamente produzidas nas pessoas, através de uma série de procedimentos controlados de transformação afeto-corporal, a que são submetidas desde criança, e que incluem: ingestão de certos alimentos, ordálios e provas de fogo (no caso da qualidade agressiva); desenvolvimento da audição, do entendimento e do respeito/vergonha (pia’àm), enfim, de uma moralidade comunitária (no caso da qualidade domesticada ou mansa).

Domesticados e Selvagens (parte III)

Os dois vetores da relação

Voltemos às reuniões com os brancos e às relações dos Xikrin com a Vale do Rio Doce. Considerando o que discutimos acima, a manifestação da qualidade àkrê que se desvela em momentos de confronto político – expressa na modificação corporal, no uso das pinturas e armas, na fala “dura”, no tom ameaçador – é muito mais que uma simples performance ou um simples teatro, compreendidos como “mentira”, ou representação falseada ou fingida do que se passa. Ao contrário, sugiro que tais eventos, em que os Xikrin apresentam-se em seu aspecto àkrê, são momentos em que as coisas aparecem como elas devem ser, do ponto de vista Xikrin. Isto é, onde se ressaltam mais claramente as posições "nós / outros", "mebêngôkre / kuben" ou "índios / brancos". Essa relação se constitui, de certa maneira, pelo sentido da ação: um é o agente ou sujeito da ação; o outro, seu objeto.

Evidentemente, as reuniões e os eventos políticos com os brancos são momentos em que a relação dos Xikrin com eles se desloca para um determinado plano em que devem ser descontadas ou desconsideradas as sutilezas e multiplicidades da interação ordinária. É certo que nem todos os brancos são iguais – há brancos antropólogos, missionários, agentes de Funai, funcionários do Posto, da Vale do Rio Doce, madeireiros, enfim, de todos os tipos. Igualmente, nem todos os Mebêngôkre o são da mesma forma (podendo ser mais ou menos parentes, mais ou menos amigos, ligados por afinidade ou por relações putativas e de compadrio). Além disso, do ponto de vista Xikrin, é sempre possível, dadas certas condições, transformar um tipo de gente em outra. O casamento e a convivência prolongada é o instrumento básico de transformar kuben em mebêngôkre. Porém, nos contextos de confronto político, algo se passa de maneira a colocar em segundo plano o fato de que, no dia a dia, os Xikrin estabelecem relações verdadeiramente amistosas e cordiais – vale dizer, “domésticas” – com muitos brancos.


Foto Cesar Gordon

O estado uabô, assumido pelos Xikrin em sua relação com os brancos após o processo de pacificação empreendido pelo Estado brasileiro resultou, da parte dos Xikrin, na cessação de uma disposição geral para a guerra. Isso implicava, entre outras coisas, tratar o branco como amigo (ombikwá, que é a mesma palavra para parente). Num certo sentido, é exatamente isto: tratava-se de considerar o branco como um parente. Com o fim das guerras e a incorporação à “comunhão nacional”, não só os brancos passaram a ser considerados amigos ou parentes, mas também os outros índios de outras etnias. Eis uma frase dita por um chefe Xikrin a esse respeito:
A gente não deve brigar [fazer guerra, matar] com outros índios, pois somos todos parentes. Antigamente nossos avós não sabiam que estavam matando parente, mas hoje a gente sabe. E também não devemos matar kuben, pois somos todos gente.

Ressalvando o caráter oficial e diplomático do trecho, ele expressa todavia uma expressão concreta e verdadeira da avaliação que os Xikrin fazem de sua história recente. Com a pacificação e a integração ao Estado, houve um alargamento, politicamente estratégico e socialmente necessário, do universo dos parentes e de uma concepção do humano mebêngôkre a círculos muito amplos, tais como os índios brasileiros, todos os brasileiros, e todos os kuben. Por isso, em sua análise das mudanças culturais kayapó, Terence Turner é levado a dizer que na “nova visão de mundo kayapó, os brasileiros foram admitidos enquanto seres plenamente humanos e sociais” (“De cosmologia a história: resistência adaptação e consciência social entre os Kayapó”, in: Amazônia: etnologia e história indígena, 1993, p.58). Ele descreveu corretamente uma face do fenômeno. Porém, há uma outra face, complementar à primeira, que parece poder se expressar na seguinte pergunta: até onde é possível continuar sendo Mebêngôkre, pensados como uma gente diferente de outras gentes (do tipo de gente representado pelos brancos, por exemplo), se todos forem indiscriminadamente e igualmente gente?

Porém, de fato, foi assim – pacificamente – que, desde um momento recente da história, os Xikrin (e os outros Kayapó-Mebêngôkre) aceitaram estabelecer um novo padrão de relacionamento com os brancos. E assim eles o vêm fazendo. De sorte que, evidentemente, o estado pacífico não é, por sua vez, uma outra performance ou dissimulação, a encobrir a verdadeira natureza selvagem dos índios. Em certo sentido até, é bem verdade que os Xikrin, hoje, consideram-se mais uabô e menos àkrê do que foram um dia. Mas é porque, justamente, esse é um processo infinito e de mão dupla, que lhes ocorre desde o princípio dos tempos. Sua história e sua existência pode ser vista, a partir do momento em que puderam tornar se àkrê, como um contínuo deixar de ser àkrê, não deixando nunca de o ser; e um contínuo deixar de ser uabô, nunca deixando de o ser.

Foto: Cesar Gordon

Não custa recordar um dos modos recorrentes com que os Xikrin referem-se aos tempos idos (amrêbê): seus antepassados “comiam cru, pois não possuíam o fogo” (como hoje faz o jaguar de quem subtraíram o fogo), “comiam pau podre, pois não possuíam roças de batata”, “dormiam como porcos do mato, porque não tinham redes”, “matavam por qualquer coisa, à toa (kubin kajgó)”, e por aí vai. Nos dias atuais, a utilização cotidiana das vestimentas dos brancos, suas roupas ou sua “pele” (kuben kà, palavra mebêngôkre para roupa, significa literalmente ‘pele/couro/invólucro’ de kuben), aparece como sinal desse estado pacífico, e dessa relação de amizade – desse certo grau de aparentamento com os brancos. No entanto, apesar disso, tal aparentamento parece encontrar limites claros e é mesmo negado em certas circunstâncias. De um ponto de vista geral, os Xikrin manifestam repúdio em transformar-se em branco, a menos que essa transformação seja ritual. Eles não manifestam qualquer desejo de transformar os brancos em afins verdadeiros e parentes através do casamento e da cohabitação. Ao contrário, afirmam que o casamento com brancos é moralmente ruim (punure, mejx kêt).

Portanto, o aparentamento amplo que resultou da pacificação precisa ser de algum modo negado, se os Xikrin – como parece ser o caso – acham-se dispostos a continuar ‘sendo/estando Xikrin’, ou seja, para prosseguir com o objetivo de produzir pessoas mebêngôkre, diferenciando-se dos brancos e do kuben em geral. Logo, mais uma vez, percebe-se a importância de manter sempre um quociente àkrê na relação. Com efeito, em algum momento, é preciso recolocar o branco em sua posição de não-parente, em sua posição de estrangeiro. E o modo de fazer isso é manifestando-se contra ele por meio da ação predatória. Ou seja, é preciso colocar-se na posição de sujeito, de um modo àkrê, para que ressalte no branco a diferença, a alteridade.

Resta dizer que esse duplo modo de relação (uabô/akrê) não é absolutamente novo aos Xikrin. Ao longo da sua história, como vimos, seus antepassados, ainda que considerados retrospectivamente pelos próprios Xikrin como eminentemente àkrê (ou mais àkrê do que são hoje), sempre foram capazes de estabelecer relações amistosas e de troca pacífica com estrangeiros indígenas ou brancos. Assim ocorreu, por exemplo, em suas relações com os índios Karajá e com seringueiros e castanheiros, no século XX. Porém, essas parcerias eram intrinsecamente instáveis e podiam ser desfeitas a qualquer momento, desembocando em guerra. Era muito comum que o padrão de trocas pacíficas fosse interrompido por um súbito ato predatório cometido pelos Xikrin.

Assim, é possível entender por que relações pacíficas, mais ou menos duradouras, não são garantia contra ação predatória ou contra a irrupção da agressividade e dos valores àkrê, que ocorrem seja na guerra, seja na paz. Embora, de maneira geral, os Xikrin digam-se atualmente uabô (ou mais uabô do que já foram outrora), eles continuam tornando-se àkrê em certas relações, mesmo que isso não se manifeste necessariamente em combates armados ou violência real, mas sim, predominantemente, em situações políticas, como são as reuniões com a Vale do Rio Doce. Tornar-se àkrê implica recolocar os brancos na posição de estranho, de externo, de outro; e isso se faz por meio da ação predatória.

Hoje, no contexto das reuniões, os Xikrin e os Kayapó valem-se primordialmente de uma predação simbólica: daí toda a mise en scène coletiva dos “guerreiros”, que envolve a pintura corporal, os adornos plumários, as armas tradicionais e a fala dura.

Saber se as ameaças de violência xikrin podem ou não se concretizar, parece-me uma questão secundária do ponto de vista a análise antropológica. O mesmo não se pode dizer no que diz respeito às relações institucionais com a Vale do Rio Doce e o com o Estado brasileiro. A questão é delicada. Embora não seja esta a intenção dos Xikrin, a violência pode, com efeito, concretizar-se, nunca se sabe. Eventualmente, a predação simbólica e política pode se converter em predação real, pois os limites entre elas são tênues – não apenas para os índios, aliás, como para qualquer ser humano. Até hoje, as ameaças de ação concreta dos Xikrin limitaram-se a invasões à Serra de Carajás e ao bloqueio de estradas da companhia. Muito mais raramente tomam funcionários da Vale como reféns e podem até saquear o comércio do núcleo de Carajás.

Esse tipo de atitude é incomum, mas ocasionalmente ocorre, contra a Vale e contra outros brancos da vizinhança. Apesar de, no geral, relacionarem-se de maneira perfeitamente pacífica nas cidades, pode acontecer de grupos de jovens Xikrin resolverem cometer algum abuso sobre pequenos estabelecimentos comerciais da região, consumindo produtos em grandes quantidades e deixando a dívida “pendurada”, que o comerciante, constrangido, é obrigado a aceitar. A prática repudiada pelos mais velhos e pelas lideranças, mas a dívida às vezes não é paga. O dono do estabelecimento, então, vai bater às portas da FUNAI e das associações xikrin, para reclamar e cobrar a dívida. Muitas vezes, esses são potencialmente os momentos de contrapredação dos brancos, pois vários comerciantes bem podem aparecer com dívidas inexistentes, notas e faturas falsificadas e superfaturadas, que as associações acabam absorvendo, renovando o ciclo, já que os Xikrin, no fim das contas, irão cobrar da Vale do Rio Doce, convocando novas reuniões.

Tais acontecimentos (em que a predação torna-se real, por assim dizer) são raros, como disse – e os Xikrin querem manter, e sabem que precisam manter, suas relações de amizade com os brancos. Todavia, independentemente de sua agressividade manifestar-se ou não em atos concretos de guerra, os Xikrin precisam continuar tornando-se àkrê pois essa é a forma da relação com o kuben. Em última instância, eles precisam continuar virando àkrê se desejam permanecer um tipo de gente específico, diferente dos brancos. E a Vale do Rio Doce (mas não só ela), pelo menos em determinados momentos de sua relação política com os índios, ocupa a posição do kuben a ser simbolicamente predado.


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