sexta-feira, 30 de maio de 2008

Domesticados e Selvagens (parte I)

Os brancos no centro da roda

Reuniões com os representantes da Companhia Vale do Rio Doce, funcionários da FUNAI, políticos ou procuradores públicos são momentos de grande efervescência política para os Xikrin, grupo Mebêngokre (Kayapó) do Sul do Pará, falante de uma língua jê setentrional. Reuniões são eventos nos quais os Xikrin, em bloco, procuram afirmar-se politicamente e fazer valer suas demandas diante da sociedade brasileira.

O texto que se segue baseia-se primordialmente em observações feitas durante reuniões dos índios Xikrin com funcionários da Companhia Vale do Rio Doce, empresa que capitaneia a exploração mineraria na região de Carajás e que mantém um convênio de assistência aos índios, a titulo de compensação pelos impactos ambientais em uma zona de floresta vizinha à Terra Indígena Xikrin.

Atualmente, a Vale do Rio Doce é a principal fonte de recursos dos Xikrin, movimentando vultosos gastos anuais para cumprir o Convênio 453 de 1989, e contratos subseqüentes com os Xikrin. Os recursos são gerenciados por associações sem fins lucrativos dirigidas pelos Xikrin, e alocados a diversos programas de assistência – saúde, educação, infra-estrutura, vigilância do território, atividades produtivas, transporte, abrangendo ainda boa parte do pessoal envolvido nessas atividades – e incluem uma verba fixa, paga mensalmente, destinada ao consumo de bens não-duráveis. O Convênio garante aos Xikrin um bom padrão de assistência, provavelmente bem melhor do que o da grande maioria das populações indígenas no Brasil, ainda que a Vale do Rio Doce não venha sendo capaz de gerenciar de maneira adequada e inteligente sua relação com os índios.

Os gastos anuais destinados aos Xikrin costumavam ser orçados normalmente a cada final de ano, ou início do ano-base, em reunião dos índios com representantes da Vale do Rio Doce e da Funai, na “casa dos homens” no centro da aldeia, ou no núcleo de Carajás, sede da companhia, ou ainda em Marabá. Nessas ocasiões, os índios estabelecem e apresentam aos encarregados da Vale as suas prioridades de desembolso: construção de casas, aquisição de barcos e motores, aquisição de caminhões para transportá-los às cidades vizinhas, aumento do valor da verba destinada ao consumo mensal, etc.

A reunião de planejamento é antecedida, durante alguns meses, de uma intensa, difusa e complexa mobilização da comunidade indígena. Tal mobilização sofre, evidentemente, interferências múltiplas e heterogêneas de uma série de pessoas envolvidas com os Xikrin – representantes da própria Vale do Rio Doce; assessores do Convênio e técnicos; funcionários do Posto Indígena, incluindo os chefes da Funai, pessoal de saúde e educação; funcionários das associações; terceiros diversos (empreiteiros, por exemplo); cada qual com suas motivações específicas, algumas mal-disfarçadamente direcionadas muito mais aos próprios interesses do que em prol dos índios. Mas é claro que, mesmo as sugestões bem-intencionadas de alguns dos atores não vão sempre ao encontro do que desejam os próprios índios.

No que concerne exclusivamente a eles, as demandas têm, geralmente, sua origem no interior das unidades domésticas, as casas. Alguém precisa de uma moradia nova ou de uma reforma no telhado. Um outro deseja um motor de popa para seu barco. Uma mulher reclama da falta de uma máquina de costura. Outra diz que é preciso equipar sua cozinha com um fogão, pois mal é possível preparar a comida para as pessoas de sua casa sem tal utensílio. Outra, ainda, lembra que seu filho tirou carteira de motorista, e que seria importante que ele começasse a treinar no caminhão da comunidade, ou em uma viatura nova, substituindo o motorista não-indígena. Surgem também assuntos gerais, como aumento da verba mensal, construção e melhoria de estradas dentro da área, aumento de recursos para saúde, etc.

De rumores domésticos, as demandas individuais e coletivas vão lentamente ganhando momento e materialidade, até serem finalmente expressas de modo público na “casa dos homens”. Mas, antes disso, muita conversa já terá acontecido na casa dos chefes, que serão porta-vozes de um conjunto de reivindicações. Finalmente, nos dias que precedem a grande reunião, todos os homens conversam muito na casa do centro da aldeia. Então, depois de tanto escutar, o chefe da aldeia prepara uma lista de solicitações, que será entregue aos representantes da Vale do Rio Doce na hora da reunião.

O ponto alto de todo esse processo é a grande reunião de planejamento, envolta em impressionante mise-en-scène por parte dos Xikrin. As aldeias mobilizam-se e a maior parte dos homens adultos se faz presente, junto com os chefes e lideranças, formando um grupo de algumas dezenas de homens, que se referem a si mesmos em português como “guerreiros”. As mulheres, normalmente, não participam das reuniões, sobretudo quando não ocorrem na aldeia. Mas, eventualmente, podem acercar-se da casa no centro da aldeia, com as crianças, para observar o que se passa. Os homens apresentam-se pintados e paramentados, com adornos plumários, braceletes, quase sempre portando as antigas armas de guerra: bordunas, arcos e flechas. Reúnem-se na “casa dos homens” à espera dos brancos, em meio à exortações proferidas ora pelos chefes, ora por homens mais velhos.


Foto Cesar Gordon

Quando chegam à aldeia os representantes da Vale do Rio Doce, os servidores da Funai ou os funcionários brancos das associações, todos os homens xikrin já se encontram na casa de reuniões. Em pouco tempo, os funcionários brancos vêem-se cercados por uma massa de índios pintados e ornamentados. A sensação de desconforto para alguns brancos é nítida. Há uma seqüência de cumprimentos, que os índios fazem questão de realizar. Depois um dos líderes inicia a reunião, conclamando os representantes da Vale do Rio Doce a colocarem se no centro da “casa dos homens” para prestar os informes necessários quando for sua vez de falar. Mas antes falam os índios. Alguns em tom moderado, outros em duros discursos contra a companhia, responsabilizada pelas carências da aldeia.


Foto Cesar Gordon

As reuniões obedecem a um ritmo ou a um roteiro razoavelmente fixo, ditado pelos Xikrin. Eles iniciam falando, a começar pelos chefes, que se pronunciam em português, mas com trechos em mebêngôkre dirigidos à audiência indígena, entre os quais se destacam várias expressões de incentivo, com função fática (djãm tãm? ≈ ‘não é isso?’; djãm kôt? ≈ ‘está certo?’), respondidas em uníssono pelos homens: Tãm! (‘isso mesmo!’), Nà! (‘sim’). Os chefes são seguidos por outros “guerreiros”, cujos discursos apresentam enorme homogeneidade, por vezes tratando-se de repetições e reiterações de trechos já ditos pelos que falaram anteriormente.

Algumas vezes, os Xikrin fazem coincidir essas reuniões de política externa com o período cerimonial. Realizados também, quase sempre, no centro da aldeia, os rituais xikrin têm, caracteristicamente, a capacidade de criar, por uma série de procedimentos, um estado emocional e afetivo partilhado por todos os co-residentes aldeãos. Esses procedimentos são de diversas ordens, mas têm como motivo uma espécie de “focalização” perceptiva, sensorial e performativa que produz uma aproximação ou identidade corporal e psíquica das pessoas: dança-se junto (em fila, de mãos dadas, ou abraçados, com os corpos juntos), canta-se em uníssono (ainda que em vários momentos haja separação entre vozes masculinas e femininas), come-se junto, relembram-se parentes mortos e histórias de antepassados comuns.

Nos períodos rituais, determinados sentimentos e afetos que são cotidianamente partilhados apenas pelo círculo mais restrito de parentes podem ser reconhecidos mais amplamente em todos os co-residentes (e eventualmente em gente de outras aldeias, já que os rituais podem congregá-las). Tais sentimentos, no contexto doméstico, constituem-se pelo processo de “fabricação corporal”, isto é, pela fabricação dos corpos (afetos e sentimentos) dos parentes como se fossem um mesmo corpo ou um corpo assemelhado pela partilha de substâncias – esse “nhi pydji” : ‘corpo único’, ‘carne única’, como dizem os Xikrin, que é característico dos parentes próximos e que já foi definido na literatura sobre os Jê do Norte como o “grupo de substância” (ver Roberto da Matta, por exemplo, O mundo dividido, 1976, p.244).
Nos períodos rituais, os corpos, afetos e sentimentos partilhados e assemelhados do ambiente familiar e doméstico parecem poder ser partilhados pela aldeia inteira. E são reconhecidos como os mesmos sentimentos e afetos corporais inerentes à esfera doméstica, constituindo, assim, a idéia de um único corpo físico e social, uma comunidade, enfim. Pode-se dizer, portanto, que os procedimentos rituais estão na base da constituição da própria comunidade em seu sentido pleno. Nesse sentido, o ritual apareceria como o ponto mais alto do processo de fabricação do parentesco e de constituição dos grupos locais xikrin e kayapó, pensados como grupos de parentes.


Foto Cesar Gordon

Portanto, não é casual que os Xikrin definam o momento da reunião com os brancos no centro da aldeia com a expressão aben pydji (‘tornar-se um’). É como se, tal como os rituais tradicionais, as reuniões políticas pudessem também criar um estado afetivo comum, um corpo comum, que se contrapõe, então, nesse momento, aos brancos ou kuben (termo da língua mebêngôkre utilizado para se referir aos brancos ou não indígenas de maneira geral). Podemos supor também que o estado de “comunidade” constituído pelo ritual facilite o entendimento e o consenso interno num momento em que é preciso atuar homogeneamente e em bloco para obter melhores resultados diante de um estrangeiro poderoso.

Quando a reunião ocorre fora da aldeia, os Xikrin preparam-se para ir à cidade de um modo totalmente diferente de quando para lá vão no dia-a-dia. Em circunstâncias corriqueiras, eles visitam a cidade vestidos com roupas de branco e gostam de se apresentar “bem-arrumados”, “civilizados”, “igual ao kuben”. Isto é, procuram apresentar a face domesticada ou pacífica (tradução do termo uabô) de sua relação com os estrangeiros. Para os importantes eventos políticos, ao contrário, os Xikrin acorrem à cidade como se estivessem partindo para uma expedição de caça ou de guerra. Assumem uma aparência àkrê, isto é, ‘bravia’, ‘feroz’, ‘selvagem’ – e apresentam-se como se fossem supostamente atacar um inimigo. O antropólogo norte-americano Tercence Turner, talvez o maior conhecedor da cultura meêngôkre kayapó, já havia chamado a atenção para o modo como os Kayapó utilizam conscientemente a imagem que deles fazem os brasileiros, e se valem dos signos de sua reputação de guerreiros ferozes para obter dividendos políticos. Turner descreveu a expedição dos Kayapó para o célebre “encontro de Altamira”, em 1989, como sendo equivalente a uma “caçada coletiva” (“Baridjumoko em Altamira”, Povos Indígenas do Brasil 1987 1990, CEDI, 1991, p.337).

A questão é interessante. Nos dias de hoje os Xikrin (e outros Kayapó) não mais se consideram eminentemente àkrê (brabos, selvagens), nem se reconhecem efetivamente como guerreiro – no sentido estrito de não fazerem mais guerras reais, já que, por outro lado, os homens continuam adesignando-se a si mesmos, simbolicamente pela palavra “guerreiros”. De qualquer modo, na performance das reuniões, é como se os Xikrin reativassem um estado belicoso, fazendo da sua própria braveza, ou dos símbolos de sua braveza, um código e uma pragmática. Digo isso porque quando perguntados sobre sua atuação agressiva nas reuniões, os índios foram explícitos em afirmar que se trata de uma estratégia de negociação, para que os brancos fiquem acuados (kam uma kadjy – ‘para que tenham medo’), e não de uma ameaça concreta de violência. Assim, paralelamente à aparência bravia, destacam a relevância de saber “falar duro” (kaben töjx, kaben katàt) com os brancos para que suas reivindicações sejam atendidas. De fato, as reuniões são eventos em que a oratória xikrin é extremamente ressaltada. Por isso é importante atualmente dominar bem o português, para que se possa impressionar os brancos com as palavras certas, direitas (kaben katàt).

Muitas vezes, porém, as negociações tornam-se tensas, os Xikrin voltam a falar, endurecendo a conversa, eventualmente ‘ameaçando’ tomar atitudes mais extremas. Fechar as estradas de acesso à Serra de Carajás, paralisando algumas das operações da Vale do Rio Doce, é uma das ameaças constantes dos Xikrin, caso a empresa descumpra os acordos previamente estabelecidos. E os Xikrin podem, de fato, invadir a Serra de Carajás e fechar a estrada ou a ferrovia, como já ocorreu, recentemente, em algumas ocasiões, com a nítida disposição de obter, por pressão, o que fora acertado e, do seu ponto de vista, descumprido. Esses momentos podem desdobrar se em eventos bastante tensos e problemáticos, nos quais os Xikrin podem tornar-se, suponho, verdadeiramente àkrê. A questão é delicada. Aliás, esse é um ponto em que os índios insistem enfaticamente, dizendo que só tomam medidas mais enérgicas quando percebem que estão sendo enganados ou “enrolados”, conforme dizem, até o limite do tolerável pelos brancos.

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