segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

A floresta amazônica por quem esteve lá

Werner Herzog é para mim o maior cineasta vivo. No início dos anos 1980, durante a verdadeira saga que foram as filmagens de Fitzcarraldo (1982) em plena floresta amazônica peruana, Herzog deixou estas reflexões antropológicas fundamentais sobre a natureza. As cenas foram colhidas do documentário Burden of Dreams , do diretor Les Blank, lançado no mesmo ano. O original é em inglês, mas abaixo segue uma tradução livre minha para que todos possam compartilhar.

Eu não sei, ao certo, se existe harmonia ou ordem no universo. Mas se há, certamente está em algum lugar oculto aos nossos sentidos e pensamentos no coração caótico da floresta amazônica.



É claro, nós estamos desafiando a natureza [filmando na floresta], e ela contra-ataca. Ela contra-ataca; é só. E aí reside a grandiosidade da natureza. E nós temos que aceitar o fato de ela ser muito forte do que nós. [Klaus] Kinski sempre dizia que a natureza está cheia de elementos eróticos. Mas eu não a vejo assim erótica. Antes, eu a vejo cheia de obscenidade. A natureza aqui é abominável, imoral. Eu não diria que há erotismo aqui. Eu diria que há fornicação, e asfixia, e sufocação, e luta pela sobrevivência, e crescimento, e decomposição generalizada. Certamente há muito sofrimento [durante a filmagem]. Mas é o mesmo sofrimento que está por toda a parte à nossa volta. Aqui as árvores vivem em sofrimento, os pássaros vivem em sofrimento. Eu não creio que os pássaros estejam cantando, e sim lançando gritos de aflição.

Esta é uma terra inacabada, ainda pré-histórica. A única coisa que falta aqui são os dinossauros. É como se uma maldição dominasse toda a paisagem. E todos aqueles que se arriscam penetrar a floresta recebem sua cota de maldição. Então, somos amaldiçoados pelo que estamos fazendo aqui. É uma terra que Deus, se existe, criou com fúria. É o único lugar em que a criação ainda não foi concluída. Olhando com cuidado em torno, de fato há uma espécie de harmonia. É a harmonia de uma matança coletiva e acachapante.

E nós, em relação a essa linguagem de virulência, imoralidade e obscenidade da floresta; nós, comparados com essa linguagem imensa, parecemos apenas frases incompletas e mal acabadas, tiradas de um livro estúpido e provinciano, de um romance barato. E temos que ser humildes diante de todo esse sofrimento avassalador, essa fornicação tremenda, esse crescimento acachapante, essa falta de ordem absoluta. Até mesmo as estrelas no céu, vistas daqui parecem uma massa caótica. Não há harmonia no universo. Temos que nos acostumar com a idéia de que realmente não há harmonia tal como nós a concebemos.

Porém quando eu digo isso, digo-o cheio de admiração pela floresta. Eu não odeio a floresta, ao contrário eu a amo. Amo muito. Mas eu a amo a despeito da minha própria razão.

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